Na edição de 17.2.2016 deste periódico, discutimos um tema muito interessante e que guarda enorme interesse para os registradores brasileiros.
Não raro, defrontamo-nos com decisões jurisdicionais que prima facie soam lógicas, mas, vistas com cuidado, especialmente pela perspectiva dos direitos materiais, representam absurdezas difíceis de reparar na sucessão natural do iter dominial.
Enfrentamos os temas derivados de recente decisão, proferida pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em que se determinou a penhora de uma oficina localizada em parte de imóvel residencial do executado, objeto de uma só matrícula do registro predial e com numeração predial distinta.
Muitos emprestaram sua opinião.
Nesta ocasião, tenho o gosto de reproduzir o pensamento da registradora portuguesa, querida colega que goza de enorme prestígio, reconhecida como autoridade nos temas de direitos registral.
Divulgo o texto com entretítulos por mim interpolados (com a vênia da colega). SJ
Penhora de parte de prédio e da sua registrabilidade
Madalena Teixeira*
A questão da penhora de parte de prédio e da sua registrabilidade não constituirá preocupação privativa dos colegas brasileiros, porquanto, também entre nós, tem surgido a dificuldade em lidar com a apreensão de parte da coisa, que é objeto do direito de propriedade do executado, e com a sua tradução tabular.
Se dissermos, com José Lebre de Freitas [1], que a satisfação do direito do exequente é conseguida, no processo de execução, mediante a transmissão de direitos do executado, antecedida da apreensão (penhora) dos bens que constituem o objeto desses direitos, facilmente se conclui que, na penhora de um prédio, o que está em causa é o direito de propriedade plena e exclusiva do executado sobre esse prédio ou um direito real menor que acarrete a posse efetiva e exclusiva do mesmo.
Tratando-se do direito de propriedade, é dado adquirido, na fixação do conceito deste direito real, que ele afeta a totalidade da coisa que tem por objeto (princípio da especialidade ou da totalidade), não se concebendo, portanto, direitos de propriedade plena e exclusiva sobre partes não autonomizadas da coisa [2].
Assim, sendo o executado titular da propriedade plena e exclusiva do prédio, é o prédio (porção delimitada do solo com as construções nele existentes), como coisa una objeto da afetação própria do direito subjetivo, que deve ser objeto da apreensão (penhora), tendo em vista a ulterior transmissão do direito (de propriedade) do executado, para, através dele, direta ou indiretamente, ser satisfeito o interesse do credor [3].
Pode acontecer que o valor do prédio, que é objeto do direito de propriedade (plena e exclusiva) do executado, seja manifestamente superior ao da dívida exequenda e dos créditos reclamados, pesando então um problema de adequação da penhora ao valor da obrigação exequenda [4] e, bem assim, a ideia de que o sacrifício do patrimônio do devedor só é admissível desde que absolutamente necessário à satisfação do direito do credor [5].
No entanto, ainda que não se adeqúe, por excesso, ao montante do crédito exequendo, a execução não poderá deixar de recair sobre a totalidade do prédio ou sobre parte juridicamente individualizada. O mesmo é dizer que a alienação coercitiva de parte do prédio só se coadunará com o princípio da especialidade ou da unicidade do objeto atrás referido se houver um ato prévio ou simultâneo de autonomização material (fracionamento fundiário) ou jurídica (constituição do prédio em propriedade horizontal) dessa parte, que passe a constituir objeto único da titularidade a transmitir por via executiva.
Sabendo-se que a simples interposição de uma ação executiva não é de molde a postergar as garantias conferidas à propriedade privada ou o direito do devedor à integridade do seu patrimônio, qualquer ato de fracionamento fundiário ou de constituição da propriedade horizontal não deverá ocorrer, normalmente, por via de um qualquer poder coercitivo do tribunal, mas em resultado do exercício da faculdade de modificação do direito de propriedade que só ao proprietário pertence, observados que sejam os condicionalismos legais atinentes à criação de frações autônomas ou à divisão fundiária rústica ou urbana [6].
A ordem judicial e matriz constitucional
Mas mesmo que se queira encontrar fundamento, de cariz constitucional, que habilite o tribunal a substituir-se ao executado na modificação do direito de propriedade, de forma a resguardar, por exemplo, o direito à habitação, tal vicissitude deverá operar no âmbito da venda executiva, restringindo-se o objeto da venda à coisa juridicamente autonomizada e libertando-se simultaneamente a parcela sobrante ou a fração autônoma restante (destinada a habitação) do jugo da penhora.
O que, de ponto de vista legal e dos princípios constitucionais dos direitos reais, se mostra desajustado é, com efeito, a incidência simultânea de dois direitos de propriedade sobre a mesma coisa jurídica (o prédio), com uma distinção funcional, econômica e fiscal de duas partes pertencentes a pessoas diversas, mas sem a correspondente individualização jurídica, negando-se, dessa forma, o destino jurídico unitário da coisa e a aptidão para abarcar a generalidade dos poderes sobre a totalidade da coisa que caracteriza e sustenta a essência do direito de propriedade.
Se consideramos, com alguma doutrina, que a penhora envolve a constituição de um direito real de garantia a favor do exequente [7], fácil será concluir, mais uma vez, que a penhora sobre parte de prédio não incide sobre coisa certa e determinada, vale dizer, não incide sobre prédio suscetível de propriedade autônoma e, como tal, não se coaduna com os princípios da coisificação e da especificação que orientam o Direito das Coisas.
A “inelutabilidade” da ordem judicial e qualificação registral
Ainda assim, o que fazer diante da “inelutabilidade” da penhora ordenada judicialmente, que, ao invés de incidir sobre o prédio, no seu todo, em consonância com o princípio da especialidade ou individualização ligado ao lado interno do direito real de propriedade, abrange apenas parte do prédio?
Considerando que a penhora consiste numa apreensão judicial de bens cujo acertamento pertence ao tribunal e que a penhora, embora delimite o objeto dos atos executivos subsequentes, não é o ato final do processo executivo e, portanto, só por si, não é de molde a operar o desmembramento do prédio, podendo vir a extinguir-se por causa diversa da venda executiva (por exemplo, em virtude do pagamento voluntário da dívida exequenda), a técnica que, entre nós, vem sendo aplicada vai no sentido de se proceder à feitura do registo da penhora na ficha do prédio, com identificação, no extrato da inscrição respetiva, da parte que é afetada pela diligência.
Uma vez realizada a venda executiva da parte penhorada, em processo dirigido, controlado e tutelado pelo juiz e, portanto, insuscetível de ser sindicado pelo serviço de registro, procede-se então à desconexão do prédio objeto mediato do registro de aquisição, a lavrar com base no título de venda judicial ou de adjudicação ao exequente, ainda que tal alienação ocorra à margem das disposições legais vigentes em matéria de fracionamento rústico ou do direito do urbanismo, posto que, repetimos, é ao juiz, não ao conservador, que compete a sindicância exclusiva da legalidade do ato judicial (venda executiva) produtor do desmembramento.
Naturalmente, a questão torna-se bem mais complexa se o prédio não for materialmente divisível, obrigando a considerar «duas sortes» e, portanto, direitos de propriedade sobre partes (planos horizontais ou verticais) do prédio estruturalmente ligadas entre si através de partes comuns, sem a adequada constituição da propriedade horizontal e sem a definição do direito que incide sobre essas partes comuns (solo, colunas, pilares, paredes mestras, etc.).
Não sendo fácil equacionar a existência de uma compropriedade sobre essas «sortes» (dependendo da concepção perfilhada, a compropriedade pode consistir num conjunto de direitos sobre toda a coisa que se autolimitam; no direito de cada um dos comproprietários a uma quota ideal ou intelectual da coisa; ou num só direito com vários titulares; mas não na coexistência de direitos de propriedade diferenciados sobre partes especificadas da coisa), será igualmente duvidoso reconhecer aqui (1) a constituição de um usufruto sobre parte da coisa, pois não é de gozo pleno e temporário de coisa alheia que se trata, mas de coisa (rectius, parte de coisa) adquirida como própria e sem limitação temporal; (2) a constituição de um direito de superfície, posto que o solo não foi excluído da propriedade adquirida; (3) ou um ato de alienação de coisa futura, a produzir efeitos reais aquando da constituição da propriedade horizontal, dado que se declara vender uma parte componente de um prédio (uma parte de coisa existente do patrimônio do devedor), e não uma fração autônoma a constituir.
O relativismo jurídico, a atipicidade dos direitos e a segurança jurídica
Sobra então a aquisição da propriedade sobre parte da coisa, sem a devida autonomização jurídica e, portanto, uma atipicidade de direito e de regime que acaba por comprometer a finalidade de segurança e de certeza atribuídas ao registro.
Ora, a nosso ver, a solução registral, não podendo afastar-se dessa intencionalidade de segurança do comércio jurídico imobiliário, não deve passar, desde logo, por colocar nos particulares o ônus do esclarecimento da situação jurídica do prédio, empurrando-os para um enquadramento extrajudicial dos direitos respectivos como condição necessária à continuidade do trato sucessivo, nem deve outrossim consistir numa operação imediata de adaptação, a cargo do registrador, que se traduza em converter as relações jurídicas criadas num certo tipo ou categoria de direito real, reintegrando o sentido e alcance da decisão judicial.
Não estando em causa a obediência às decisões judiciais ou qualquer tipo de juízo crítico sobre o valor do ato praticado no processo sob tutela judicial, mas a falta de individualização jurídica do objeto transmitido e de definição do regime a que o prédio fica sujeito, a solução passará, antes de mais, ou pela recusa do registo, por estarmos diante de uma situação jurídica que não é enquadrável nas normas definidoras dos tipos legais e que, portanto, não existe como situação jurídica real [8], ou, ao menos, por um procedimento de dúvidas ao registo da venda judicial, assente precisamente no elevado grau de incerteza na compreensão da situação jurídica do prédio.
Na impossibilidade de consolidação da recusa ou de superação das dúvidas suscitadas e perante a obrigação de inscrever o título nos seus precisos termos, talvez possa então servir de modelo e de auxílio a figura da “propriedade por andares”, com a indivisão forçada de certas partes do edifício, que estava prevista no Código de Seabra (art. 2335.º do CC de 1867) [9]; que fazia conviver na mesma matrícula (relativa à unidade real ou à porção delimitada do solo) dois ou mais direitos de propriedade, tendo, cada um deles, por objeto uma parte da coisa devidamente identificada; e que permitia instalar, nas tábuas, dois ou mais tratos sucessivos paralelos.
Tudo isto, naturalmente, de forma a permitir o acatamento do ato judicial (cuja atipicidade normativa não se conseguiu demover) e na convicção de que, transposta esta fase, a continuidade do trato sucessivo não poderá já prescindir da integração da realidade criada numa categoria jurídica de direito real, mediante um título lavrado com a intervenção de todos os interessados e uma eventual aplicação da teoria da conversão dos negócios jurídicos.
NOTAS
[1] A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014. pp. 231 e ss.
[2] Henrique Mesquita, Direitos Reais, sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, pp. 13/14, e Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra, 1977.
[3] Segundo Enrico Redenti, apud José Lebre de Freitas, ob. cit., p. 299, n. 3, a penhora incide sobre a coisa, mas com vista ou em função do direito; rigorosamente, a penhora realiza-se, na sua materialidade, sobre as coisas do devedor para mais tarde chegar à «expropriação» dos direitos reais sobre elas incidentes.
[4] Sendo o bem atingido pela penhora total ou parcialmente destinado à habitação própria e permanente do executado, intercedem, em certos ordenamentos jurídicos, preocupações de índole constitucional relacionadas com o direito à habitação que também restringem as condições de alienação coerciva desses imóveis.
[5] Paula Costa e Silva, “As garantias do executado”, A Reforma da Ação Executiva, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7-2003, Almedina, Coimbra, 2003, p. 201.
[6] É precisamente na regra da proporcionalidade da penhora que assenta a faculdade que, entre nós, é concedida ao executado de requerer autorização para proceder ao fracionamento do imóvel penhorado divisível, de modo a permitir ou o levantamento parcial da penhora sobre alguns dos imóveis resultantes da divisão, com fundamento na manifesta suficiência do valor dos restantes para a satisfação do crédito do exequente e dos credores reclamantes, ou que a venda executiva se inicie por algum ou alguns dos prédios resultantes da divisão, cujo valor seja suficiente para o pagamento.
[7] V., por todos, José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, cit., pp. 307/308.
[8] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª ed. rev. e at., Quid Juris? Sociedade Editora, Lisboa, 2003, p. 76.
[9] Já as Ordenações Filipinas (I, 68, 34) dispunham sobre a possibilidade de o sobrado e o sótão de um edifício terem diferentes proprietários.
Madalena Teixeira, licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra, Conservadora dos Registos Predial e Comercial em Portugal, membro do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. (IRN), membro do Conselho Redatorial dos “Cadernos Cenor” do Centro de Estudos Notariais e Registais (CENOR), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, docente nos Cursos de Pós-Graduação e Cursos Temáticos organizados pelo CENOR, autora de diversos artigos no domínio do Direito Registral, relacionados, entre outros, com o registo predial de sentenças estrangeiras, as limitações ao direito de propriedade, o direito ao ambiente, os empreendimentos turísticos, o registro eletrônico e a proteção de dados pessoais.
Fonte: Observatório do Registro
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