Há 12 anos, o advogado e professor de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Roque Antônio Carrazza, recebeu uma árdua missão do hoje presidente do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (Sinoreg-SP), Cláudio Marçal Freire: encontrar uma solução jurídica para a gratuidade imposta pelo Governo Federal aos Registradores Civis de Pessoas Naturais nos atos registro e emissão de certidões de nascimentos e óbitos de todo o cidadão.
Nascia então o projeto do Fundo de Ressarcimento dos Atos Gratuitos do Registro Civil, vetado em âmbito federal, mas aplicado desde 2002 no Estado de São Paulo, por meio da Lei Estadual 11.331, e que viria a se tornar modelo para as demais unidades da federação.Passados pouco mais de uma década daquela que viria a se tornar uma grande conquista da atividade extrajudicial, o ilustre tributarista foi novamente convocado pela classe para mais um grande desafio: defender no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a tese que a cobrança de ISS de notários e registradores deve se dar por meio de uma base de cálculo sobre um valor fixo anual.
Nesta entrevista à Arpen-SP, Roque Carraza, fala sobre as estratégias da defesa para o iminente julgamento, além de apontar inconstitucionalidades nas cobranças retroativas praticadas por diversos municípios brasileiros e a incidência do imposto sobre atos oriundos do ressarcimento dos atos gratuitos. "Eu estou muito otimista e estou bem preparado. Diria que esta entrevista é uma avant première do que eu pretendo fazer na tribuna do STJ. E que Deus ilumine a todos nós", afirma o professor.
Leia abaixo a íntegra da entrevista concedida à Arpen-SP.Jornal da Arpen-SP - Qual a opinião do senhor sobre a constitucionalidade da cobrança de ISS de notários e registradores?
Roque Carrazza - Eu entendo que os notários e registradores, exatamente por prestarem serviços públicos não podem ter suas atividades submetidas à tributação por meio do ISS. Por quê? Por que o ISS alcança serviços prestados sobre regime privado, em caráter negocial, com autonomia, com fito de lucro, que não é o caso dos serviços notariais e de registro.
Eu defendi esta tese nos idos de 2003, assim que entrou em vigor a Lei Complementar 116 e, em um primeiro momento, a minha tese acabou contando com o beneplácito da doutrina e do próprio Poder Judiciário. Os tribunais estaduais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificaram o entendimento de que os sobre os serviços notariais e de registro não há incidência possível de ISS. Mas aí aconteceu o imponderável.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ignorando a doutrina, eu diria unânime, e a jurisprudência mansa, pacífica e reiterada dos nossos tribunais, inclusive do STJ, decidiu pelo contrário, de que os serviços notariais e de registro devem sim ser submetidos à tributação por meio de ISS. Sendo mais específico declarou constitucional o subitem 21.1 da lista anexa da Lei Complementar 116, que estabelece serem tributáveis por meio de ISS os serviços notariais e de registro. Então estamos diante de um fato consumado. A mais alta Corte do País decidiu que há ISS sim sobre os serviços notariais e de registro. Acontece que a Suprema Corte deixou em aberto a questão da base de cálculo desse ISS, como se apurar esta base de cálculo.
Jornal da Arpen-SP - E como o senhor entende que seja apurada a base de cálculo deste imposto?
Roque Carrazza - Existem duas correntes a respeito. A que entende que a base de cálculo é o preço do serviço e há os que entendem que é o meu caso, que a base de cálculo deve ser um valor fixo anual. Por que entendo que a base de cálculo deve ser valor fixo anual? Por que se está diante de um serviço pessoal, prestado sobre a responsabilidade direta e limitada do notário ou do registrador por danos que eventualmente ele ou seus prepostos venham a causar a terceiros. Ora, para serviços deste tipo a legislação é clara. O parágrafo primeiro do artigo nono do Decreto Lei 406 estabelece que a base de cálculo é um valor fixo. Trata-se do mesmo tipo de tributação que alcança os advogados, como profissionais liberais, e que pagam sobre um valor fixo e não sobre o preço dos serviços prestados. Este é o meu entendimento que eu terei a honra de defender daqui a algumas semanas perante o STJ e tenho esperança de que a tese vai definitivamente vingar diante das peculiaridades dos serviços públicos em questão. Serviços pessoais, não serviços envolvidos com a intermediação de uma empresa, em caráter negocial.
Jornal da Arpen-SP - Como o senhor vê a questão de vários municípios estarem calculando a cobrança de ISS dos serviços extrajudiciais de períodos anteriores à decisão do STF?
Roque Carrazza - Ainda que por absurdo, espero que isso não aconteça, o Poder Judiciário entenda que o ISS a cargo dos notários e registradores deve ser calculado tomando como paradigma o preço dos serviços prestados, esta nova sistemática de tributação só pode irradiar efeitos para o futuro. Se por mais não fosse, em razão do que estabelece o princípio da segurança jurídica e o que determina com todas as letras o artigo 146 doCódigo Tributário Nacional. Em outras palavras. Na pior das hipóteses, esta sistemática mais rigorosa só pode projetar efeitos para o futuro, não poderá abarcar o passado. Isso se chama irretroatividade do Direito. É um fator de segurança jurídica, de estabilidade das relações sociais. Então, na pior das hipóteses, a nova sistemática de apuração do ISS, caso esta tese vingue, espero que não, só poderá se fazer para o futuro.
Jornal da Arpen-SP - No caso de cálculo sobre o preço do serviço, este valor poderia ser repassado ao usuário do serviço?
Roque Carrazza - Nada impede que a lei dos Estados e as próprias leis dos municípios prevejam o repasse dessa carga econômica do ISS aos usuários dos serviços. Eu acho isso ruim, pois os que usufruem dos serviços notariais e de registro terão que suportar um aumento do preço, mas é a única maneira possível para que se mantenha o equilíbrio econômico financeiro das delegações dos serviços notariais e de registro. Então, ainda há esta possibilidade, mas que dependerá de lei. Mas uma lei desse tipo será não somente constitucional, como louvável, mas trata-se de um passo para o futuro que acredito, não precisará ser dado, por que tenho a convicção que o STJ, já que o ISS é inevitável, vai fixar a tributação sobre o valor fixo e não a tributação sobre os serviços prestados.
Jornal da Arpen-SP - Como o senhor vê o fato de que municípios estão querendo incluir no cálculo da tributação o valor recebido por registradores civis a título de ressarcimento pela prática de atos gratuitos?
Roque Carrazza - Esta possibilidade não me parece possível sobre hipótese alguma. Por quê? Por que a quantia recebida por meio desse fundo de compensação não é o preço dos serviços prestados. Os serviços são prestados a título gratuito por uma disposição constitucional. O que existe aí é um ressarcimento, uma recomposição patrimonial. Ora, o ISS incide sobre serviços efetivamente prestados a título oneroso. Estes serviços foram efetivamente prestados, mas a título gratuito. Aproveitando a oportunidade, entendo que nem o Imposto de Renda poderia ser devido sobre estes valores recebidos a título de compensação, exatamente por que aí não há incremento patrimonial, não há mais valia, não há riqueza nova, há apenas recomposição de patrimônio, há indenização. O registrador apenas vê recomposto o seu patrimônio, não vê nada acrescido ao seu patrimônio, então não espaço nem mesmo para tributação por meio do imposto sobre a renda sobre estes valores.
Jornal da Arpen-SP - Há 12 anos o senhor foi o autor do parecer que embasou a criação dos fundos de ressarcimento dos atos gratuitos do Registro Civil. Como construiu esta tese?
Roque Carrazza - Me baseei nos princípios gerais do Direito. Já que há esse encargo constitucional de se estender a certidão e o registro de nascimento e óbito a título gratuito para toda a população, o Estado para manter o equilíbrio econômico financeiro da delegação tem que encontrar meios pra ressarci quem presta estes serviços. E um dos meios possíveis, me pareceu já na época, é exatamente o fundo de compensação. Não fosse o fundo de compensação o próprio Estado teria que ressarcir. Se o serviço é prestado por delegação do Poder Público e se esta delegação não traz nenhuma vantagem patrimonial a quem a exercita, cabe ao Estado recompor o patrimônio do delegatário. Mas encontrou-se esta fórmula que não vulnera o erário e ao mesmo tempo mantém indene o delegatário, o registrador. Parece-me uma fórmula interessante que o Estado de São Paulo adotou. No âmbito federal houve o surpreendente veto da presidência da República, o que não significa que a matéria não pode voltar à tona com um novo projeto de lei que possa tramitar e venha a ser convertido em lei. Seria uma lei justa, razoável e, a meu ver, acima de tudo jurídica.
Jornal da Arpen-SP - Como o senhor vê a tese que o senhor iniciou ter se tornado um modelo de sucesso em São Paulo e ter se expandido paras as demais unidades da federação?
Roque Carrazza - Eu fico feliz ao perceber que um estudo técnico, um estudo científico acabou tendo repercussões práticas. Como um estudioso do tema só posso me regozijar de ter lançado a semente que a final frutificou. Mas há muitas lutas ainda a serem travadas no que se refere à tributação dos notários e registradores. Temos um longo caminho a percorrer e, sempre que procurado, eu terei prazer em ajudar pessoas que ao longo dos anos têm me honrado com pedidos de estudos, de pareceres e de sustentações orais. Inclusive nas próximas semanas vou fazer uma sustentação oral defendendo que a base de cálculo possível do ISS é, no caso questão, um valor fixo e não o preço dos serviços prestados.
Fonte: Arpen/SP
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