Avanços
Na quinta-feira, em sessão histórica, o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu que a união entre gays está legalizada no Brasil. O placar de votação também foi histórico. Por 10 votos a 0, os ministros - numa decisão unânime - tornaram a união estável "homoafetiva" legalizada, incluindo o Brasil entre os países que reconhecem a união homossexual como algo legal e corriqueiro para a sociedade. As aspas na palavra "homoafetiva" são um protesto contra mais esse eufemismo para designar o relacionamento amoroso entre pessoas do mesmo sexo. O ser humano é por definição "homoafetivo", somos seres capazes de estabelecer empatia com quaisquer semelhantes, independentemente do sexo.
A decisão estabelece um precedente nacional e determina que, na ordem jurídica, gays possam ter sua união estável reconhecida pela Justiça, garantindo direitos semelhantes a casais heterossexuais como pensão, herança, comunhão de bens e previdência. A decisão também deve facilitar a adoção de crianças por duas pessoas do mesmo sexo, reconhecendo, então, como família, gays que possuem filhos adotivos.
A partir da decisão, o casal homossexual pode pedir o reconhecimento da união civil em cartório, ou juridicamente comprovar a união estável, a fim de usufruir dos direitos comuns a casais heterossexuais. Não houve passeatas ou protestos mais incisivos, além das críticas da CNBB e dos evangélicos. Os religiosos têm direito de protestar. Isso não tira, no entanto, o caráter avançado da decisão, representado no aprofundamento do conceito de Estado laico, um ícone fundamental da democracia moderna. Mas, como estamos no Brasil, muitas dúvidas técnicas e jurídicas surgiram.
O tribunal, na verdade, julgou duas ações. A primeira, proposta pelo governo do Rio de Janeiro, pediu ao tribunal que aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis - previsto no Artigo 1.723 do Código Civil e no Artigo 226 da Constituição Federal de 1988 - às uniões "homoafetivas" de funcionários públicos do estado. O objetivo: que esses servidores tenham assegurados benefícios como previdência, concessão de assistência médica e licença, por exemplo. O argumento dessa ação é o de que não reconhecer essas uniões contraria princípios constitucionais como o direito à igualdade e à liberdade, além de ferir o princípio da dignidade da pessoa humana.
A segunda ação, apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), tinha caráter mais amplo: além de reconhecer os direitos civis de pessoas do mesmo sexo em todo o País, e reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar. Os fundamentos utilizados foram basicamente os mesmos da outra ação, com um argumento adicional: reconhecida a união estável como entidade familiar, fica assegurada a segurança jurídica do casal.
AVANÇO NA VIDA REPUBLICANA
Ao julgar favorável a segunda ação, o STF avançou perigosamente em dois pilares da vida republicana: o poder de legislar do Congresso e a letra da Constituição. Os argumentos usados no plenário são relevantes. Eles têm a ver com princípios fundamentais da Constituição, como a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à igualdade, e ainda a vedação a qualquer tipo de preconceito. "O sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se expressa como fator de desigualdade jurídica", como disse o ministro Ayres Britto, relator da ação. O problema é que a Constituição Federal e o Código Civil são explícitos ao definir a "entidade familiar" como algo que nasce da união entre homem e mulher.
Essa nova definição de família tem consequências que vão além de permitir que dois homens que vivem juntos, por exemplo, possam compartilhar um plano de saúde ou fazer declaração conjunta de Imposto de Renda. Como os ministros do Supremo não criaram nenhum limite para a aplicação da sentença, abriu-se um leque mais amplo de possibilidades não contidas em nenhuma regulamentação. O conceito de família que consta das leis brasileiras deveria, de fato, ser mudado para que pessoas do mesmo sexo possam se enquadrar nele. Mas, por mexer com temas tão delicados quanto a adoção, deveria ser conduzido no Congresso - se o Congresso não tivesse aberto mão de discutir os assuntos que, de fato, dizem respeito à vida do brasileiro. A omissão do Congresso abre caminho para o "ativismo" do Supremo, e isso pode ser perigoso para a ordem democrática.
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