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15/04/2010
Os pontos sensíveis da alienação fiduciária
Julio G. Andrade Neves

A alienação fiduciária de bens móveis (AFG), entendida como transferência da propriedade para assegurar a quitação de uma dívida, é uma das garantias mais prestigiadas no mercado financeiro.

Suas principais vantagens são procedimentais, uma vez que, na cobrança regular, permite a busca e apreensão dos bens, além de sua alienação extrajudicial, sem prévia avaliação ou leilão. Por outro lado, na falência, é extraconcursal, proporcionando ao credor a facilidade de receber longe da discussão judicial da quebra.

Não sem razão, portanto, a alienação fiduciária de bens móveis revelou-se uma opção atrativa, tanto em pequenos financiamentos - na aquisição de carros, por exemplo -, como na configuração de "pacotes de garantias" para grandes empréstimos.

Sem discutir a já consagrada utilidade da AFG, é preciso atentar-se aos recentes posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema, os quais devem constar da ordem do dia de qualquer credor cauteloso. Dentre eles, destaca-se a impossibilidade de o credor propor ação de execução para cobrança do saldo devedor, após a alienação extrajudicial do bem dado em garantia.

Um exemplo demonstra a gravidade da situação. No Resp 265.256, julgado pelo STJ em 2009, um banco vendeu o bem dado em garantia a um terceiro interessado. Porém, o valor recebido não foi suficiente à quitação da dívida e os devedores continuaram responsabilizados pelo saldo em aberto.

Tendo em mãos o mesmo contrato, o banco propôs ação de execução. Contudo, o STJ entendeu que a venda do bem havia retirado do contrato a certeza e liquidez necessárias a esse tipo de processo. Ou seja, a AFG havia prejudicado o financiamento, provocando um rebaixamento legal: antes era título executivo, depois não o era mais.

Com essas premissas, extinguiu-se a execução, restando ao banco ajuizar ação de cobrança pelo penoso rito ordinário. Na prática, dependendo do Estado de ajuizamento, a mudança implicará em um acréscimo de cinco a dez anos para o recebimento dos valores devidos, tornando a recuperação de créditos absolutamente impraticável.

Tanto mais grave, a extinção da execução leva o credor a pagar verbas que podem chegar a 20% do valor da dívida. Portanto, o devedor ganha prazo para o pagamento e o banco sofre uma perda de até um quinto do crédito.

Os efeitos desse entendimento apenas se agravam nos casos em que os empréstimos têm um pacote de garantias, dentre as quais a AFG "cobre" apenas um percentual do total. Assim, a venda extrajudicial de bens representativos de 5% da dívida resultaria na perda da força executiva dos 95% restantes.

A justificativa do STJ por essas decisões é de que a alienação fora de uma ação não garante a obtenção do valor de mercado e o devedor poderia ter sido lesado pela venda a preço vil. Esse posicionamento não parece ser o melhor, por três motivos.

Primeiro, porque os negócios presumem-se idôneos até decisão judicial em contrário. Logo, se o devedor apenas em hipótese poderia ter sido lesado, o STJ não pode presumir que de fato foi, retirando do credor a opção da execução.

Segundo, porque o credor depende da venda por bom preço para ter a dívida quitada. Por isso, ainda que o STJ pudesse presumir o descaso do banco com o devedor, seria ilógico presumir uma despreocupação com seu próprio patrimônio. Invariavelmente, se há saldo a executar após a alienação extrajudicial, não é porque o credor assim quis, mas porque não pode evitá-lo.

Finalmente, não há dispositivo legal que apóie as conclusões dos julgados. Mesmo que se admitisse uma interpretação pelos objetivos da lei, a conclusão seria oposta, já que o sistema é voltado para a velocidade da cobrança.

Por essas razões, faria mais sentido manter a força executiva do contrato de financiamento, reconhecendo que não há uma hierarquia entre vendas judiciais e extrajudiciais. Essa visão não prejudicaria o direito de defesa do devedor, que teria a seu dispor mecanismos para responsabilizar o credor que alienasse a garantia por valor inferior ao real.

Quando houver execução, essa responsabilização deverá ser formulada em embargos por excesso de execução. Se a dívida inflou-se por má-fé do credor, o caso é de se retirar da quantia executada a diferença entre o valor do bem e o preço de fato obtido. Para isso, o executado deverá indicar o preço pelo qual a garantia deveria ter sido alienada. Se não o fizer, sua defesa será liminarmente rejeitada (artigo 739-A, parágrafo 5º , do CPC).

As vantagens desse entendimento são evidentes: a recuperação de crédito ganha em eficiência; preserva-se o direito de defesa do devedor; e evita-se o manejo de medidas meramente protelatórias, pois impõe ao devedor a obrigação de quantificar e fundamentar a lesão sofrida.

Para se privar desse debate e mitigar riscos, credores têm adotado duas estratégias. A primeira consiste em ajuizar uma execução indicando o bem alienado fiduciariamente à penhora. Algumas decisões confirmam essa possibilidade (STJ, Resp 448.489), mas a estratégia parece cometer um erro para corrigir outro, já que os bens são de propriedade do credor e, por isso, impassíveis de penhora por ele mesmo.

A segunda abordagem vincula a garantia a um percentual da dívida reduzido. O bem garante o débito até apenas 80% de seu próprio valor, o que diminui a chance de haver saldo garantido a executar após sua alienação. O problema com esta manobra é que, caso o bem seja alienado por bom preço, a instituição financeira, além de não receber o total do crédito, pode ter que se sujeitar ao absurdo de restituir a seu devedor parte do preço da venda.

Caberá ao Poder Judiciário rever suas decisões sobre a AFG, que, sem dúvidas, constituem pontos sensíveis para a concessão de financiamentos. Por ora, a incerteza sobre o tema continuará e, com ela, seus indesejáveis reflexos sobre a segurança jurídica e o custo de empréstimos no país.

Julio G. Andrade Neves é advogado do escritório Pinheiro Guimarães Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

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