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22/04/2013
Artigo: Um criolo de nome Francisco: Uma vida esquecida dentro da primeira e última escritura de compra e venda de escravo no distrito de Enseada de Brito

Por: Haneron Victor Marcos

Sobre o Artigo[1]

Sobre o autor[2]

A Enseada de Brito, como já prenuncia seu nome, é um pequeno porto de abrigo, um curto recôncavo na costa do mar ainda hoje pouco povoada, encravada entre a capital do estado de Santa Catarina, seguida do litoral norte desenvolvido[3], e o litoral sul do estado, com uma histórica dependência do extrativismo mineral e que reclama pela expansão rodoviária para seu desenvolvimento. É um daqueles locais próximo e ao mesmo tempo distante dos grandes centros.

Seus casarios coloniais, alcançados por ruas de paralelepípedos, e sua dedicação ao mar e à cultura açoriana fazem da Enseada um retrato daquilo que fora os primeiros povoados em Santa Catarina. É distrito do município de Palhoça, que hoje integra a região metropolitana da Grande Florianópolis. Os 361 Km2 de extensão do município, desmembrado de São José em 1884[4], permite a conjugação de tudo o que há de mais saboroso e desgostoso na sociedade capitalista cotidiana. Centros urbanos, parques protegidos, mangues (um dos maiores do país), favelização, retiros, belos balneários turísticos e bucólicos lugares "esquecidos" como a Enseada. Não há neste recanto nenhum edifício, nenhuma construção que guarde maior opulência do que aquelas moradas coloniais e sua antiga igreja na praça central.

Campos (2009) nos lembra que a Enseada de Brito representa os primórdios da fundação do município que hoje se desenvolve, talvez felizmente, de costas para este distrito. Um bandeirante paulista de nome Domingos "de Brito" Peixoto foi o primeiro a buscar fixar-se nesse território em 1653. A fundação da Freguesia de Enseada de Brito só se daria, no entanto, pelo reforço da colonização açoriana, em meados do século XVIII, entre os anos de 1748 e 1756, quando ali se estabeleceram 476 pessoas, sendo o suficiente para que fosse incluída dentro da estrutura administrativa do exitoso Império Português. A expansão da colonização açoriana se daria com mais ênfase e profundidade após a invasão espanhola de 1777 da Ilha de Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, capital do estado (Campos, 2009).

Acompanhando essa profusão na colonização portuguesa, veio o aparato escravagista, que enaltecia o status social e dava vazão às necessidades domésticas e comerciais. Nesse tempo, a região da então Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Enseada de Brito era insignificante diante da capital da Província representada pela Ilha de Nossa Senhora do Desterro, ainda separada por poucos metros de mar com a sua ponta sul.

A colonização açoriana, pautada em produtos que não eram do interesse exportador do Império Português (como farinha de mandioca) e em pequenas propriedades de produção agrícola, faz alguns autores considerar que o escravismo assumia um caráter pouco significativo na região. Entretanto, ainda que a propriedade escrava estivesse mais direcionada para as atividades domésticas e de reflexo de poder social, as mais recentes obras evidenciam um importante papel social e econômico dos escravos em Santa Catarina (Penna, 2005). A informação trazida por Scheffer (2006) de que Victorino de Menezes[5], talvez o maior negociante de escravos da Província, tinha fazenda em Enseada de Brito pode refletir a possibilidade de uma maior presença de escravos nessa Freguesia.

Inobstante, a associação da propriedade escrava a uma resumida preocupação de status social torna esta condição, se é possível, ainda mais desprezível, justificando ainda mais um reavivamento da história. De fato, desconsiderar 24% de uma população cativa (isto sem contar os libertos) seria um crime historiográfico, pela invisibilidade do negro na história catarinense. Negro catarinense que ainda carrega as agruras que não terminaram com abolição da escravatura.

A Lei Áurea, trazida para nossa hodierna sistemática legislativa, era absolutamente merecedora de um decreto regulamentador, para admitir uma transição que não tornasse a liberdade um termo tão vago e na prática inalcançável.

A invisibilidade não se deu somente pela atribuída insignificância, mas pelo próprio desprezo aos nomes e registros desses homens, que tiveram ignorados seus nomes africanos de origem, merecendo um incompleto "aportuguesamento". Da leitura de inventários, anúncios de jornal, relatos de fuga, só se percebe, via de regra, o ofício, o primeiro nome, idade, e a sua cor (negra ou parda, fundamentalmente).

A pesquisa de Penna (2009, p.71) sobre processos de inventário nos traz um exemplo clássico:

"Em 1872, Custódio possuía matriculados sete escravos: o roceiro José, pardo, de 53 anos; a cozinheira Maria, preta, de 44 anos; a cozinheira Christina, parda, de 14 anos; o roceiro João, preto africano, de 60 anos; o roceiro Alexandre, preto de 52 anos, o roceiro Francisco, pardo de 15 anos; e a lavadeira Justina, preta de 20 anos".

Interessava, enquanto valiosas mercadorias, uma designação básica, acompanhada da idade e profissão. Os anúncios e inventários constantes dos arquivos públicos demonstram que um escravo muitas vezes valia mais que uma propriedade imobiliária.

Sua relevância econômica fez com que a Província institucionalizasse prêmios por captura, e tivesse de valer-se de uma triste profissão histórica: a de Capitão do Mato. Nesse sentido encontrou Martha Rebelatto (2006, p. 18):

Para a Ilha de Santa Catarina e redondezas os valores fixados foram os seguintes:

Pelo escravo que se apanhar de Caiacanga, Freguesia da Lagoa, de São José, Cacupé ............. 2$560

Por cada escravo ribeirinho que se apanhar desde o Saco do Itacorubi, Rio Pirajubaé pelo Morro da Vila ............. 1$280

Pelo escravo que se apanhar até a Igreja da Cachoeira Manoel de Piar Caiacangaçu ............. 3$200

Pelo escravo que se apanhar desta paragem, Cª forra e de Barra de Dentro ............. 5$000.50

Estes valores oferecidos eram como um prêmio, já que eram acrescentados sobre os dez mil réis do salário designado ao Capitão do Mato, além destes terem permissão para ficar com as armas encontradas no quilombo para si. A diferença dos valores permitia que o Capitão do Mato fosse a locais mais distantes, algumas vezes de difícil acesso, já que receberia uma recompensa maior pelo esforço.

Para a população jovem brasileira, o tema parece associado à ficção, ainda que a distância temporal seja comparada a um grão de areia dentro do campo da história mundial. Não é preciso recorrer aos museus para senti-la, o que a torna mais real e amarga, pois é a face escura e institucionalizada de uma natureza humana que mesmo Aristóteles buscou explicar, e que pode ser tocada por qualquer um, por exemplo, que hoje se dirija à Escrivania de Paz do Distrito de Enseada de Brito.

Em meio aos modernos registros civis e negociais, é possível se deparar com uma manuscrita escritura pública de compra e venda de um escravo. É, por sinal, a primeira escritura registrada naquele cartório, e a última que teve o homem enquanto mercadoria.

Mas que homem era esse? Aos que o negociaram resta acessível um encontro às suas árvores genealógicas e mesmo à heráldica, pois têm prenome e sobrenome. Ao negro Francisco, mercantilizado, sobrou-lhe uma matrícula, registrada na província como todos os escravos dados ao comércio ou atividade econômica (sem tal registro, o escravo era serviente tão somente para atividades domésticas, o que lhe reduzia o preço).

O estudo deste documento, que se encontra apenso em sua íntegra ao presente artigo, permite uma real noção de nosso passado recente. Tudo se passa "no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e oitocentos e oitenta e um" (Sim, Jesus foi lembrado neste documento), no dia vinte e um de agosto, no arraial da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Enseada de Brito, mesmo ano em que Aluísio de Azevedo (falecido em Buenos Aires no ano de 1913) escreveria O mulato, obra prima que abordava o preconceito racial no Maranhão e os abusos eclesiásticos[6].

Há muito o Brasil havia conquistado sua independência, ocorrida em sete de setembro de 1822. No entanto, vigia ainda a Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, que só seria revogada com a Proclamação da República[7], e que pelo seu artigo 6º, não deferia aos escravos a condição de cidadãos (eram cidadãos brasileiros os ingênuos[8] ou libertos nascidos no Brasil). A obra de Azevedo, enquanto o mundo já apontava para grandes revoluções (no ano da escritura em debate o Czar Alexandre II seria assassinado por insurgentes contra a monarquia, num preparativo à Revolução de 1917), ainda que em proporções reduzidas de ofensa ao sistema, já foi o suficiente para chocar a sociedade.

Alheios às críticas literárias, Manoel José da Silveira Júnior, enquanto outorgante vendedor, e Domingos Caetano da Costa, enquanto outorgante comprador, fechavam o negócio da vida de Francisco, de cor preta, com trinta e oito anos de idade, solteiro, natural desta Província e com profissão lavrador. Francisco era um bem, uma res valorizada. Fora negociado em 1881 por setecentos mil réis, muito acima das avaliações oficiais coletadas por Clemente Gentil Penna (2005, p. 81), com base em inventário judicial de 1882, senão vejamos:

No inventário de Antônio Pereira Pinto, falecido em 1882 em Canasvieiras, são arrolados um escravo de nome Tadeu, caolho de 30 anos, lavrador, avaliado por 400$000 e Francisca, parda de 30 anos e classificada como doméstica, com uma filha ingênua de nome Valentina, ambas avaliadas por 380$000. A única casa presente entre os bens valia 300$000, e possuía apenas alguns poucos móveis.

Note-se a relevância econômica de Francisco, cujo preço em muito superava ao de propriedades imobiliárias. Era o preço de seu trabalho, de seu corpo, que, de acordo com a escritura, ficava pertencendo de hoje para sempre. E a sua alma?

Talvez a força desta alma, somado a dos demais irmãos africanos acometidos da mesma dor, é que tenha levado à formação dos quilombos, primeiros núcleos de resistência que apesar de estarem associados mais à cultura nordestina, foram marcantes na região.

Na visão das autoridades, os quilombos locais eram foco de perturbação, uma vez que os negros quilombolas, pela própria condição fugitiva e de restrição sobre meios de subsistência, tinham de se socorrer às plantações próximas, furtando alimentos. Ademais, os quilombos muitas vezes eram portos seguros para soldados desertores e brancos fugitivos da justiça. Realçando a participação de Enseada de Brito na vida escravagista, Martha Rebelatto (2006, p. 31) dá conhecimento de que ainda em 1822, em correspondência entre o Governador e o Juiz de Fora, havia informações da necessidade de nova investida em locais onde se achassem aquilombados pretos fugidos em sinal das perturbações causadas pelo mesmo.

Nesta nova empreitada, há registro de que o Comandante da Enseada de Brito estava a requerer participação, com pedido de permissão para atirar em quilombolas, o que foi desencorajado pelo Juiz de Fora (mesmo que considerasse justa), com a ressalva de que a autorização dava-se somente para situações de última instância.

Francisco, por certo, não resultou morto desta empreitada. Nem poderia, pois aos 38 anos era negociado em 1881. Sua história, porém, está resumida nesse público e triste documento. O mesmo não ocorreu com seus Senhores, com prenomes e sobrenomes. De rápida pesquisa, é possível conhecer que o português Domingos Caetano da Costa, veio a falecer solteiro aos 53 anos, no hospital do Carmo. Tal fato encontra-se publicado na página 7 do Diário Oficial da União em 27 de dezembro de 1897, nunca se olvidando a possibilidade de que haja um homônimo.

Através de fonte não oficial, soube-se que Jorge Luiz da Silveira, morador de Florianópolis (antiga Desterro), tinha como bisavô o açoriano Domingos Vicente da Silveira, militar da Guarda Imperial, que teria vindo para o Brasil para residir em Enseada de Brito, onde teria comandado um forte até a Proclamação da República, em 1889. Domingos aparece na escritura de Francisco como Escrivão do Juízo de Paz, e assim a informação não oficial de seu descendente de que seu bisavô tinha relação com o Império ganha robustez.

Com relação aos negociantes, e do próprio Francisco, não consta nenhum outro registro naquela Escrivania Distrital alusivo aos mesmos, segundo depoimento de Suzana Aparecida Alano, que a comanda desde 2004, e segundo seu predecessor, Osório Gonçalves de Souza, responsável vivo mais antigo.

A Escrivania de Paz do Distrito de Enseada de Brito, segundo incompleta informação do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, tem lei de criação datada de 12 de dezembro de 1889, ato legislativo curiosamente anterior à Proclamação da República ocorrida quase um mês após, em 15 de novembro do mesmo ano. A lei, na ordem normal, deveria ser ato consectário à Proclamação, em reconhecimento das escrivanias e cartórios instaurados no regime monárquico, sob decreto.

Visita ao museu do Poder Judiciário, apesar da receptividade atenciosa, restou-se infrutífera, eis que não havia informações pretéritas sobre a atividade notarial em Enseada de Brito, servindo de surpresa, inclusive, a apresentação da escritura colhida por este autor, digna do museu. Há a informação de que se inicia um trabalho de resgate de alguns documentos que já estão sob a posse do museu (ainda em almoxarifado do Poder Judiciário) e que dizem respeito à Escrivania da Enseada. Todavia, pelo tempo disponível e pelos limites deste artigo, somente servem de norte para aqueles que porventura almejem um aprofundamento sobre o tema.

Considerações Finais

A escravatura em terras brasileiras representa um infausto ponto do passado brasileiro, que apesar de recente, resta estampado nos livros escolares como algo distante, tão distante que para muitos atinge quase um grau de ficção ou romance. No entanto, pouco se expressa nos meios de comunicação de que os efeitos deste período são sentidos em nosso cotidiano, através das discriminações sociais e raciais, que impactam em violência, e ignorância sobre direitos humanos e sociais elementares. A Lei Áurea, de fato, não deu fim à escravidão.

Ao nos depararmos com um documento, versado hodiernamente no meio comercial (escritura de compra e venda), que tem a chancela do Estado, e que trata da negociação da vida de um homem, enquanto objeto de direito e não sujeito, a história ganha vida, redimensiona nossa visão crítica, faz-nos ler diferentemente as poesias e a vida de Cruz e Souza[9], etc. E assim é muito feliz o Dr. Ricardo Rabinovich-Berkman ao dispor que el contacto directo con esos trozos del pasado, elocuentissimos, vivos y dinamicos, es irremplazable. Son nuestra mejor maquina del tiempo, hasta que se invente la imaginada por el genial ingles H.G. Wells. Nos permiten, como dice el historiador Robert Darnton, conversar con los muertos[10].

Essa conversa poderia ter sido maior e aprofundada, não fosse o limite característico deste trabalho, não fosse a resumida designação de Francisco (a quem não lhe foi permitido o registro de suas raízes familiares), e não fosse a falta de um maior lastro documental histórico a respeito das demais partes que vivenciaram a confecção e a subscrição da escritura. O nacional trato documental de algumas marcantes passagens históricas, tal como daqueles que denunciam a Ditadura, já era bem refletido por Rui Barbosa, quando em 1890 ordenou a queima de todos os papéis, livros de matrícula e registros fiscais relativos à escravidão existentes no Ministério da Fazenda. Muito provável que a matrícula de Francisco, estampada na escritura em manuseio, tenha com esta ordem desaparecido dos registros oficiais.

Inobstante, da breve pesquisa documental, bibliográfica e literária, e dos depoimentos colhidos, foi possível discutir um lapso da vida de Francisco, talvez a única ou mais longa dedicação ao mesmo, bem como traçar algumas inferências sobre os atores da negociação e do cenário sobre a qual ela ocorreu. Isso nos permite acrescermos dimensões em nossa viagem, em nossa leitura. Descortinou-se, ainda, um norte para aqueles que visem um aprofundamento sobre tal constatação e pesquisa.

Pela preservação de algumas de suas principais características históricas, se tais atores voltassem hoje à Enseada de Brito através da máquina do tempo de H. G. Wells (lembrada pelo Dr. Rabinovich-Berkman), talvez não tivessem significativo espanto sobre as construções ou vidas cotidianas. Maior espanto haveria, no entanto, sobre os padrões éticos ou morais muito dissonantes de um não tão distante passado.

Fonte: Site História e-história

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